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Senador ameaça renunciar se a homofobia for criminalizada


O senador Magno Malta prometeu dar um presente para a vida política brasileira hoje ao dizer que se o PL122 for aprovado ele irá renunciar ao seu mandato. Para vocês terem plena idéia de como nós só temos a ganhar com esse efeito colateral da aprovação do projeto de lei, tentem ver esse festival de imbecilidade exibido no vídeo abaixo (sobre o kit anti-homofobia do MEC) junto com um catálogo bastante extenso de falácias famosas dos livros de lógica.

Vou deixar para o leitor a identificação de falácia por falácia, mas não resisto em destacar alguns pontos baixos do discurso:

  • A insistência no “estão passando dos limites”, como se direitos civis tivessem limites.
  • “uma minoria barulhenta jamais se sobreporá sobre uma maioria que acredita na Família™ nesse país” (2’23”). Em primeiro, eu gostaria de acreditar que a minoria barulhenta na verdade é a dos religiosos lobotomizados que se incomodam tanto com a vida alheia, mas pode ser que eles já tenham virado maioria sim. Em todo caso, mesmo que a maioria da população do país seja formada pelos defensores da marca  Família Cristã™, tal como era formada a maioria do povo alemão nos anos 1930s, o que a minoria reinvidica são direitos humanos, direitos básicos, que existem justamente em contraposição ao rolo compressor da maioria. A decisão do STF sobre a união homoafetiva devia ficar na sua mesa de cabeceira para lembrar disso o tempo todo, senador…
  • Em 3’30” ele cobra explicitamente a conta do apoio a Dilma e do trabalho de cruzar “o país dentro de um jato dessatanizando a presidente”. Olha onde aquela bela campanha eleitoral nos deixou…
  • Em 04’20”, jogando o óleo para fazer uma bela ladeira escorregadia com a mirabolante história de uma jovem de 17 anos que tentou beijar uma criança de 11 à força, “calçada na decisão do STF”, e diante da resistência a espancou. Note que ele não diz que a jovem viajou na maionese ao interpretar a decisão, mas sim que ela tomou essa atitude com suporte na decisão do Supremo. Ou seja, ou fala de má-fé ou é um analfabeto funcional.

Um discurso tão equivocado e mal intencionado deveria ser falta de decoro parlamentar. O próprio mimimi de ameaçar renunciar caso perca o debate e não consiga impor a todos brasileiros aquilo que é produto somente de sua visão deturpada da fé também mostra a inaptidão do senador para a discussão democrática. Então já vai tarde. Devia renunciar logo antes da votação, por se recusar a ser parte de um jogo político que não tem as leis do Deuteronômio acima da Constituição Federal.

A Constituição está acima da Bíblia, get over it..

Se você não entende isso, senador, não deveria nem ter se candidatado...

Se você, ao contrário do senador, pensa honestamente e está minimamente interessado(a) em entender melhor o projeto anti-homofobia, creio que esse site sobre o PL122 explica bem todos os detalhes.


Deputados evangélicos contra o Estado de Direito


Deputados evangélicos, inconformados com a vitória da separação entre Igreja e Estado no STF, querem passar um decreto legislativo suspendendo a decisão que reconhece a união estável homoafetiva e atropelando a divisão dos poderes.

Ontem eu passei Jesus Camp para os meus alunos e um das lições mais claras do filme foi como toda a histeria no “treinamento” das crianças para serem soldados de Cristo serve desavergonhadamente a propósitos políticos. Os pastores não param em nenhum momento de pedir orações pelo presidente Bush, de falar de temas como a nomeação de ministros da Suprema Corte para crianças de 10 anos e, claro, de dizer que os EUA “são uma nação sob Deus” e que o aborto deve voltar a ser proibido lá. Em outro filme que quero passar semana que vem e que pretendo resenhar depois aqui, o Lake of Fire, um entrevistado denuncia que muitos ativistas evangélicos “pró-vida” (com todas as aspas dada a hipocrisia) desprezam profundamente as instituições do Estado e a democracia e aderem à “teonomia”, a idéia de que a lei de Deus é a fundação moral última das leis do Estado. Eles têm como cartilha um livro chamado The Institutes of Biblical Law que defende a pena capital para diversos crimes da lei mosaica, dentre eles a homossexualidade e a blasfêmia, e contém essa pérola de confissão: “cristandade é completa e radicalmente anti-democrática, ela está comprometida com a aristocracia espiritual” (verbete sobre o autor na wikipedia).

Os nossos pastores não parecem tão sofisticados. Felizmente. Ainda não vemos o tipo de terrorismo cristão que aparece em Lake of Fire voltado contra clínicas de aborto. Parece que nossos pastores televisivos têm o cuidado de não ir tão longe em sua pregação que acabem colocando seus lucros em perigo. Essa falta de pureza e a falta de ideólogos sofisticados o suficiente para propor uma doutrina purificada e radical nos protege um pouco, mas no ritmo em que as coisas vão não tardaremos a importar também esse tipo de babaquice dos EUA. O discurso típico dos teonomistas, o de que “a lei dos homens não pode se sobrepor à lei de Deus”, apareceu em diversos lugares depois daquela vitória e reafirmação do Estado laico que foi a decisão do STF sobre a união homoafetiva. Como eu disse no post sobre a decisão, o que estava em jogo não era só o direito de um grupo de pessoas, mas também uma luta contra uma das várias heranças arcaicas do Estado brasileiro, uma vitória das liberdades e direitos individuais, um pequeno reconhecimento (dentre tantos que ainda são necessários) do princípio básico de que as crenças de um grupo não podem ser impostas como regras para toda a sociedade. Os que comemoraram a decisão do STF não foram só os homossexuais potencialmente beneficiados por ela, mas todos os que prezam a democracia e esperam um Brasil menos obscurantista. E quando eu falo em derrotar o obscurantismo, falo de algo que será benéfico a todos. Não acho que é mera coincidência o crescimento vertiginoso do discurso religioso radical nos EUA e sua decadência econômica e tecnológica. Um país que admite o ensino do criacionismo nas escolas, nunca vai poder estar na vanguarda da ciência.

Mas, em todo caso, os negadores da democracia e do Estado de Direito não se conformaram. Não se contentando em ofender a separação entre Religião e Estado no âmbito do debate no STF, passaram a apelar para a chantagem política para reverter políticas de Estado contra a discriminação. Agora chegaram a um novo nível de desprezo pelas instituições: querem votar um decreto legislativo revogando a decisão do STF! Sob a alegação de que o STF invadiu as atribuições do poder legislativo (respondida já nos votos de alguns ministros), a bancada evangélica na Câmara está querendo promover uma real violação da separação entre os poderes. A idéia começou com esse exemplo perfeito de integridade moral cristã na política, que é o ungido e nada oportunista Anthony Garotinho e tomou a forma do PDC 224/11. O mais provável é que o PDC acabe sendo arquivado por inconstitucionalidade na própria Câmara, mas imaginem o que aconteceria se ele chegasse a ser aprovado. O STF teria que declarar a inconstitucionalidade de um decreto legislativo revogando uma decisão do STF sobre uma inconstitucionalidade! Legislar sobre os órgãos sexuais alheios é tão importante para os talibãs de Cristo que o risco de uma crise institucional vale a pena…

E para todos os que defendem que a lei de Deus está acima da “lei dos homens” fica o meu desejo que um dia apareça um presidente com coragem o suficiente para fazer como fez o presidente dos EUA, interpretado por Martin Sheen, com uma babaca da direita religiosa:


E os Hermanos estão na dianteira de novo!


Pena que brasileiro se importa mais em disputar com os argentinos em futebol do que no avanço das liberdades civis! No primeiro item nossa supremacia, com cinco títulos contra dois, parece segura por algum tempo, mas no segundo nós estamos levando uma goleada: os argentinos não abafaram os crimes do seu passado de ditadura e estão levando vários militares a julgamento, foram os primeiros na América Latina a aprovar como lei o casamento entre pessoas do mesmo sexo e agora grupos religiosos estão defendendo a legalização do aborto lá! Isso em um país onde a religião católica é a religião oficial!

Da matéria:

Em uma conferência com membros do Legislativo, o pastor Lisandro Orlov, da Igreja Evangélica Luterana Unida, afirmou que “é necessário tirar o tema [do aborto] do Código Penal para colocá-lo na perspectiva dos Direitos Humanos, do Evangelho e dos direitos das pessoas”.

“Limitar a discussão à descriminalização do aborto a um leilão entre quem está a favor e contra a prática é banalizá-la: ninguém pode estar a favor da interrupção de uma vida”, disse Mariel Pons, pastora da Igreja Evangélica Metodista. “O problema vai mais além desta falsa polarização: a mulher que busca o aborto o faz com angústia e tristeza. A comunidade tem que assumir esta realidade, não escondê-la, mas trazê-la à tona”, declarou a religiosa.

Segundo o rabino Daniel Goldman, “o aborto se pratica goste ou não a vizinha, o professor, o juiz, o religioso ou o legislador”

Leiam a matéria completa aqui: Na Argentina, religiosos defendem a legalização do aborto (Diário de Pernambuco). Via Jampa.

Enquanto isso, o que vemos no Brasil é esse tipo de coisa.


Epic Fail do Marco Feliciano


Eu sempre sustentei uma teoria (inspirada pela leitura de algumas provas de alunos) de que existem duas formas de erro: o erro passivo, uma privação, o erro no sentido da Quarta Meditação lá de Descartes, que é aquele no qual a mente deixa de acertar, que surge quando a pessoa não pensou muito antes de falar ou não sabe muito sobre o assunto; mas tem também um erro ativo, um erro que exige um esforço real para ser cometido, que ninguém comete por desleixo. Volta e meia tem aluno que inventa umas teorias tão malucas que só podem ser atribuídas a um esforço desse tipo. Pois bem, ando achando que algumas teses religiosas estão quase por aí: exigem um esforço contínuo para que se continue acreditando naquilo. Bem, nada que muitos fiéis não concordem. Já me falaram que a fé exige um esforço, é o resultado de uma busca ativa blá blá blá, o que só me sugere a palavra “auto-hipnose”. Mas em todo caso, o esforço de auto-ilusão explica que em alguns momentos as pessoas relaxem e acabem acertando sem querer! Foi o que aconteceu nesse vídeo com o Marco Feliciano, o ungido representante na Câmara dos Deputados de 211.855 eleitores que não aprenderam muito bem que religião não devia se meter com política. Reparem de que maneira, lá por volta de 1:20, ele argumenta contra a preocupação de que haverá proselitismo no ensino de religião:

Ele diz: “Se é ensinado nas escolas, de maneira científica, que o homem veio do macaco [siiiiiiiic!!], por quê não ensinar para as nossas crianças a outra história? Que o homem veio de Adão e Eva e de Deus. Porque, na língua portuguesa, se ensina factos fictícios! Nós estudamos histórias criadas e inventadas por homens. Shakespeare não é estudado na escola? (…) Se é apresentado, por quê não apresentar a maneira linda do criacionismo?

É isso mesmo, pastor! A luz da Razão o iluminou por um segundinho! Se já se ensina tantos factos fictícios, porque não ensinar mais um? Por quê não colocar a Bíblia na aula de literatura mundial, junto da Odisséia e do Épico de Gilgamesh? A qualidade literária não é das melhores — o autor do Gênesis narra uma história da Criação bem diferente poucas páginas depois de ter apresentado a primeira, não explica de onde brotaram todas as mulheres necessárias para a procriação dos filhos de Adão etc — mas tem uns bons momentos de fúria, sexo e safadeza, como outras boa obras literárias. Então, finalmente chegamos a um acordo!  Aula de religião = aula de literatura!


P.S.: Que argumentinho vagabundo foi esse contra o Estado laico? No julgamento da união homoafetiva no STF também usaram um nessa linha. No vídeo o pastor diz “(…) os juristas, os intelectuais vêm dizer que o país é laico. Laico onde? Me diga: Se qualquer de nós pegar uma nota de dinheiro agora vai encontrar lá a frase ‘Deus seja louvado’. Se Deus pode ser louvado na economia do país, por que não nas escolas?” Depois veio falar dos crucifixos nas casas legislativas e no STF.. Ora, pastor, se realmente há uma inconsistência, são esses símbolos que têm que dançar! Tá errado! Como um dos ministros do STF falou no julgamento de ontem, o Estado Laico é o fundamento da liberdade de religião, já que no dia em que o Estado assumir uma das religiões, todas as demais ficam ameaçadas. (isso é elementar, mas para algumas pessoas é preciso desenhar)


Festival de Besteiras Teístas – I


Ando sem tempo para postar no blog, por causa de uma mudança de cidade e uma nova carga de trabalho, mas só para não deixar o blog morrer de inanição, vou compartilhar algumas pérolas descobertas recentemente na internet. Fui fazer uma busca atrás de material para discutir e também para saber se o Craig tinha uma resposta pronta para uma ótima objeção ao Argumento Moral [ver obs lá embaixo] e acabei descobrindo uma penca de blogs teístas dedicados a uma cruzada contra os chamados neo-ateístas. Pelo menos um deles possui alguma sofisticação técnica em filosofia e eu também concordo, em parte, com a acusação de superficialidade filosófica a gente como Dawkins e Hitchens (mas não ao Dennett! No dia em que essa turma tiver 10% da importância filosófica dele, eu me calarei). Mas para cada blog teísta que tenta se aprofundar numa argumentação racional decente e até lidar com uma das questões mais complicadas da metafísica contemporânea, a da realidade do tempo, existem, listados no seu próprio blogroll, vários blogs que não escondem o que está por trás do pensamento desse teísmo militante. Esse blog linka, por exemplo, um blog autodenominado Mente Conservadora, cuja aliança com Silas Malafaia, não importa em que assunto, já seria sinal suficiente de pouco mérito intelectual, mesmo sem contar o apoio a Bolsonaro e uma preocupação suspeita com o tema da imigração na Europa. É esse tipo de gente que ilustra perfeitamente as preocupações manifestadas no post inaugural com a ingerência dos defensores dessas superstições judaico-cristãs na vida pública: por exemplo, nesse post o autor fala de um projeto para incluir na Constituição Federal o mito cristão de que a a vida humana e a proteção moral a ela iniciam-se com a concepção. Como já mencionei em outro post, não há critérios públicos suficientes para garantir que um aglomerado de células sem mesmo um sistema nervoso formado seja diretamente sujeito de direitos. O ponto é que gente desse tipo não é em nada diferente dos muçulmanos militantes que eles mesmos combatem e que querem contaminar a legislação com preceitos religiosos. Na ausência de evidência pública e objetiva, impor a gravidez de anencéfalos ou vetar o casamento de homossexuais não difere muito de impor o véu a mulheres.

Bem, como o festival de besteiras é tão grande como minha lista de tarefas no momento, vou guardar outras para outros posts.


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Obs.: O Argumento Moral diz, em suma, que se Deus não existe, não há valores morais objetivos e uma ação má como o estupro não seria objetivamente má, mas apenas uma questão de condenação social. A estrutura do argumento seria um modus tollens bonitinho [mas que nesse caso seria inválido na lógica intuicionista*..hehe]: Se Deus não existe, não há uma moral objetiva; há uma moral objetiva; logo, Deus existe.

Uma resposta usada nos debates de hoje em dia vem de não menos longe do que a obra de Platão: se Deus determina o que é certo e o que é errado, ou ele o faz a partir de algum critério ou o faz sem critério. Se o faz sem critério, isso é arbitrário e incompatível com a inteligência divina (e elimina o caráter intrínseco da moralidade da ação, já que um assassinato poderia ser bom caso Deus o ordenasse), mas se o faz a partir de um critério, é esse critério que determina o que é bom ou mau e não simplesmente a vontade divina. É de esperar que Craig tenha uma resposta a essa objeção, mas não a vi ainda até porque não procurei o suficiente.(Voltar para cima)

(Atualização 07/05/11: Num post posterior sobre o argumento moral, eu falo rapidamente da resposta de Craig. E nesse blog tem uma resposta maior, que não me parece tão clássica, mas serve..)

* O par de premissas ~p->~q;q só prova imediatamente ~~p, que não é redutível na lógica intuicionista a p. Se a gente ler a lógica intuicionista como uma lógica da provabilidade, então essa conclusão ~~p pode ser lida como “não é demonstrável que Deus não existe” o que é muito menos do que deseja o teísta…